domingo, 26 de janeiro de 2014

O CEERIA

O CEERIA está no centro de Alcobaça. Visitei-o num destes dias. Sob chuviscos que teimavam em cair, percorri os vários espaços interiores e exteriores, acompanhada pelos seus dirigentes e duas técnicas. Fiquei a saber que este Centro de Educação Especial, Reabilitação e Integração de Alcobaça apoia cerca de 500 pessoas com deficiências e incapacidade e suas famílias. A sua importância como estrutura social no concelho é de tal ordem grandiosa que qualquer descrição que dela pudesse fazer seria insuficiente. Por isso falo apenas do sol que encontrei em cada rosto com que me cruzei. Falo do João Carreira, e da forma como me apresentou os vestidos que concebe para as passagens de modelos. São vestidos feitos de mar, de areia e de folhas. Autênticas obras de arte. Falo também da Carolina, que é uma grande atleta, a correr e a cantar na passadeira do ginásio. E da Tânia, que me emprestou a tartaruga que tinha junto do coração na sala de relaxamento. Não me posso ainda esquecer do grupo fantástico que conduzia uma canoa na sala de ginástica. O Rodrigo ia à frente e segurava o remo. Atrás, a empurrar, a Ana Sofia, a Mónica e o Paulo Zé. De repente a canoa partiu-se. A professora prontamente uniu as partes e a aventura continuou. Conheci ainda o Vânio, a festejar os dezoito anos na piscina terapêutica. Depois de um mergulho, batemos palmas. Fantástico. Como ficou feliz. Na oficina de Azulejo, colada numa porta, a notícia: o CEERIA alcançou o 1.º lugar de escultura no 6.º Concurso Nacional “Reabilitar através da Arte”, com um trabalho intitulado “A bicicleta”. Outros prémios virão, a adivinhar pelos projetos que os vários artistas ali faziam.
Foram estes, entre muitos outros, os rostos de sol que encontrei num dia chuvoso e nublado.
No final, recebi o boletim informativo do CEERIA, onde li, na primeira página, o seguinte: “muitos dos jovens a quem dirigimos a nossa atenção não têm os corpos ágeis e vigorosos, que todos nos forçamos por possuir. Algumas destas pessoas têm corpos que não queremos olhar, corpos que nos perturbam, dos quais nos afastam porque nos fazem sofrer… e todos nós temos medo do sofrimento”. Mas também li que “se nos permitirmos aproximar do que nos causa medo, do que não queremos ver ou tocar, confrontar-nos-emos com o que não foi possível até aí e «portas de esperança se abrirão»”.
Este é, de facto, o caminho.

Região de Cister, 23.01.2014

Deolinda


 

 O mundo pequenino dos Deolinda fez vibrar o Cine-Teatro no último sábado. Casa cheia, boa disposição, muitas palmas. Duas jovens não resistiram ao ritmo das letras e músicas de Pedro da Silva Martins e dançaram no corredor. Este impulso mostra que, de facto, foi difícil manter pequenino o mundo grande dos Deolinda, um mundo de histórias que sublimemente contaram e cantaram.
Uma das histórias passou-se em Joanesburgo. Contou Ana Bacalhau que, ao decidirem ir cantar a esta cidade, foram avisados dos muitos perigos ali existentes. Não deveriam, pois, andar sozinhos na rua, falar com estranhos, sair do hotel, etc., etc. O medo foi tanto que resolveram não se afastar do local onde estavam hospedados. Sucedeu que arriscaram e foram a uma loja de tecidos. De repente, viram alguém a acenar-lhes ao longe. Resolveram disfarçar que não tinham reparado no indivíduo que teimava em fazer os mais diversos sinais. Mas este, sem desistir, foi-se aproximando. Os Deolinda, cheios de medo, apressaram-se a entrar no carro e quando estavam prestes a fugir, eis que o presumível gatuno lhes disse que queria devolver uma nota, porque tinha caído de um deles. Este episódio deu origem à canção “Medo de Mim”.
É assim um disparate ter-se medo. E foi sem medo que os Deolinda pisaram o palco do Cine-Teatro e abriram um ano de espetáculos que muito promete e para os quais estão todos convidados. Há que ouvir as histórias que os artistas têm para nos contar. A arte, mais do que ilusão ou ficção, é a realidade que nos faz sentir vivos e felizes. Sem medo.
Tinta Fresca, 20.01.2014
http://www.tintafresca.net/News/newsdetail.aspx?news=48a92951-f1c5-423e-aa11-db011cc0c965&edition=159

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Porque devemos votar

Conheci recentemente uma personagem que me encantou. Chama-se “senhor Silva”, é o protagonista do livro a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe. Trata-se de um octogenário que vai viver para o lar de terceira idade “Feliz Idade”, depois de ter ficado viúvo e de ter tido um AVC. Os filhos, cuja preocupação nuclear é a carreira profissional e as exigências da vida moderna, revelam-se ao leitor como jovens incapazes de albergar a geração mais velha dentro de casa. O senhor silva sente-o e desespera-se. Viúvo, com muitas saudades da mulher, faz o balanço de uma vida cuja fase adulta começara no Estado Novo e se desenvolvera na Democracia. Fora sempre dedicado aos filhos e à sua Laura, que preferia “que nunca nos arriscássemos a nada. era o modo que tinha de fazer a sua parte pelo mundo. não bulir com alguma coisa. não arranjar nem querer confusões. por isso não gostava que eu discutisse com ela as coisas da política. queria que a política não fosse um assunto lá de casa. Haveríamos de apreciar a poesia, o folclore e uns fados, haveríamos de ter passeios aos domingos e brincar com os miúdos a crescerem e era assim a nossa vida, sem beliscar os tubarões que nos podiam ferrar. eu, apaixonado, enternecia-me com ela e deixava-me ficar porque lhe reconhecia prudência, uma sabedoria que vinha da família, de colocar a família no centro das coisas. eu deixava que a sociedade fosse apodrecendo sob aquele tecido de famílias de bem, um mar imenso de famílias de aparências, todas numa lavagem cerebral social que lhes punha o mundo diante dos olhos sublinhados a lápis azul” (p.156).

Foi por tudo isto que o senhor Silva denunciara à PIDE um jovem que se escondera na sua barbearia. Foi por tudo isto que, já mais tarde, em plena Democracia, o senhor silva, por medo de represálias dos sucessivos governos, evitou assumir as suas convicções políticas e se foi esquivando da intervenção pública. Mas essa timidez e falta de coragem com que viveu toda a sua vida levam-no a sentir uma terrível frustração no “Feliz Idade” – tão terrível que faz dó.

Nasci em 1970. Faço parte de uma geração que teve a grande sorte de não se ter desenvolvido no Estado Novo. Assim sendo, não percebo o receio que invade todos os que dizem “não gosto de política”, “não me interesso por política”, “a política não me diz nada”, “não sou de qualquer partido”. Criticar os políticos, assim como se criticam profissionais das várias áreas, como médicos, cabeleireiros ou carteiros, quando sentimos na pele a ineficácia dos serviços que prestam, parece-me menos mal. Mas recusar qualquer tipo de intervenção social, que é sempre cívica e, portanto, política, é anularmos os nossos direitos de liberdade, que as gerações passadas conquistaram com tanto custo.

A escolha é simples: ou seguir o caminho do senhor silva, um cidadão que apenas tratou de si e dos seus e, para “evitar sujar-se”, recusou sempre intervir e se refugiou no conforto fácil; ou seguir o caminho da cidadania ativa, da intervenção, da participação política, da recusa da abstenção.

Escolher o segundo caminho é, decerto, mais difícil. Mas se o senhor Silva pudesse voltar atrás, era o que faria.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Atuar socialmente

Dezanove anos. Chamava-se Bernardo. Bombeiro em Carregal do Sal. Filho único. Morreu ao serviço de todos nós, vítima da força do fogo cruel. Foi a sétima vítima. Antecedeu a morte de um outro bombeiro, desta vez de Miranda do Corvo. Até agora, foram oito as vidas ceifadas pelo fogo.
O país, sempre que recebe a notícia da morte de um bombeiro, sente uma dor imensa. Chora com as famílias das vítimas. Questiona a justiça nesta vida. Como é possível tal acontecer? São homens e mulheres que, voluntariamente, acorrem a salvar as florestas, os campos agrícolas, as povoações, as casas onde vivemos. Como é possível que uma ação tão nobre os conduza à morte?
Por muito que tente, o país jamais conseguirá enaltecer a ação dos milhares que este ano, mais uma vez, avançaram contra as chamas. Ou esquecer os que partiram, corações nobres, solidários, valorosos, que representam o que de mais humano há na sociedade. Contudo, a dor aumenta quando percebemos que os incêndios não dependem diretamente da falta de meios. São um problema social, de resolução difícil. Falo dos “incendiários”, aqueles que por vingança, por estupidez, por doença resolvem atear a fogueira fatídica. Falo dos adolescentes e jovens que andam à deriva, sem acompanhamento, sem atenção, sem objetivos. Falo dos irresponsáveis que lançam foguetes, ignoram a limpeza dos solos, queimam lixo indevidamente. Falo dos que se maravilham com as sirenes, as câmaras de televisão e toda a envolvência do fogo-fátuo no mágico ecrã. Assim sendo, os incêndios são um problema da sociedade, que requer a intervenção de todos. Essa intervenção reside na educação cívica, na transmissão de valores, na vigilância permanente dos que necessitam de apoio, na ajuda ao próximo. A essa intervenção chamo “ação social”, que, no fundo, é a ação humana com preocupações sociais. É a ação que cabe a todos nós desenvolver, sejamos polícias, psicólogos, autarcas, professores, pais… simples cidadãos. Para podermos sentir como nossa a dor dos que partem ao serviço da humanidade, temos de desempenhar o nosso papel na prevenção do problema que os faz partir.

http://www.tintafresca.net/
15.09.2013

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Pensar a escola em tempo de verão

Agosto é, por excelência, o mês das férias escolares. Sem aulas, testes, exames, horários e rotinas diárias, onde se encaixam os tempos letivos e não letivos, as atividades extracurriculares, horas de estudo e trabalhos de casa, pais e alunos aproveitam para descansar. Apesar de alguns sinais de que o novo ano de avizinha, quer pelas campanhas do “regresso às aulas”, quer pelas habituais reportagens televisivas feitas nas livrarias e grandes superfícies, onde se questionam os encarregados de educação sobre quanto vão gastar em livros e material didático (o que é, de facto, uma grande preocupação), a tendência é mesmo gozar o mês de agosto, de forma a carregar baterias para o ano letivo que se avizinha.
Curioso é, contudo, verificar como o tema da “escola” nunca está ausente das conversas de familiares e amigos, sempre que há uma criança ou um jovem por perto. Debaixo do chapéu de praia ou num encontro de café, alguém pergunta: Para que ano vai o teu filho?, Que área de estudos escolheu?, Que curso pretende tirar?, etc., etc.. E a partir daqui a conversa vai-se desenvolvendo. Depois de respostas como o meu filho passou para o 8.º, a minha filha vai tentar subir a nota a matemática, os pais contam experiências bem-sucedidas ou problemas mal resolvidos, partilham angústias, dão conselhos aos que os pedem. Porque, de facto, a melhor escola para pais está muitas vezes no conhecimento que se vai adquirindo de outros pais, que viveram problemas idênticos ou que passaram por angústias semelhantes. É, pois, percebendo o que falhou com outras crianças ou jovens que os encarregados de educação ficam mais esclarecidos, mais atentos aos problemas dos seus filhos e, desta forma, melhor se consciencializam do que podem fazer para levar a bom porto este enorme desafio que é a educação.

As conversas de verão são, assim, uma forma de começar a preparar o próximo ano letivo. No entanto, as boas ideias que nelas surgem não devem ficar enterradas na areia. Devem, sim, ser o mote para uma reflexão conjunta a levar para a escola e a partilhar com todos os agentes educativos, antes de o outono começar.

Publicado em 2 setembro de 2013 3em http://www.tintafresca.net/

domingo, 16 de dezembro de 2012

As lições que ficam


Lembro-me de há uns quinze anos uma turma queixar-se de uma professora de matemática. Diziam os alunos que ela permanentemente se fixava na janela e se esquecia deles. Eu, como diretora de turma, teria de resolver o problema. Mas ela estava deprimida e assustada, não com a crise dos tempos de hoje, claro, mas com outra, para a qual não encontrava solução. E eu também não sabia como ajudar. Os alunos não compreendiam. Para eles, ela era medíocre. E eu, que não resolvia o caso, também. “Não se brinca com um 11.º ano”, diziam. “Eu quero entrar em medicina”, acrescentava um. “E eu preciso de boa nota a matemática, que é a específica”, acrescentava outro. “Façam os exercícios do manual que ela vai pedindo”, dizia eu, sem mais inteligência. Mas face a esta sugestão, contaram-me logo a história do dia anterior: depois de terem entrado na aula, a professora pediu-lhes que fizessem os exercícios de uma determinada página e logo fixou o olhar na janela, no Outro lado que, decerto, apaziguava tudo aquilo que a emudecia. Passados minutos, um dos alunos perguntou-lhe:

- Afinal, qual é a página, stôra?

- Ah? Ah, sim… é… é uma qualquer.

Para ela, qualquer página servia. Mas para eles não. Porém, apesar desta adversidade, os alunos lá foram caminhando até ao fim do ano e até ao fim de muitos outros anos, com a determinação que não encontraram na professora. Contudo, hoje, já médicos, engenheiros, veterinários, também olham pela janela à procura do Outro lado, o lado que alivia as tensões maiores. E agora percebem a resposta da professora. Em certos momentos da vida, qualquer página serve para a nossa história. A falta de perspetiva de futuro a isso leva.

 Publicado no Correio da Educação - Edições Asa
 

sábado, 29 de setembro de 2012


O professor catedrático Alberto Amaral, ex-reitor da Universidade do Porto, deu a sua última lição na Faculdade de Ciências deste estabelecimento de ensino, noticiou a TSF, e confessou estar «envergonhado» com a herança que o país deixa «às novas gerações».

Ingressei na Universidade do Porto, no curso que escolhi em primeiro lugar, Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, era então Alberto Amaral o reitor. Eu estava decidida a estudar Linguística, Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literaturas Africanas, Literaturas orais e marginais, Literatura Italiana, História Portuguesa, Cultura Portuguesa, etc., etc... para poder dedicar a minha vida ao ensino das letras, embora a tendência na altura já caísse para o lado da gestão, da economia e da finança. No entanto, o lucro fácil e a ascensão social canina ainda não era o pilar da vida da sociedade e a universidade do Porto, numa expansão extraordinária, deu-nos disso sinal. As letras tinham o seu lugar. Pudemos investir nas humanidades. Saímos professores orgulhosamente bem formados, para formar bem os nossos jovens.

Hoje, há que reconhecê-lo, as letras são menosprezadas e estão a ser abandonadas. As letras não enchem barriga, dizem-nos. Há professores a mais, há investigadores a mais… O país não pode com tanto. Claro. Claro.

Professor Alberto Amaral, também eu me sinto envergonhada com a herança deixada às gerações que aí vêm. No entanto, quero que saiba que o seu esforço não foi em vão.  No que me toca, luto e lutarei pelo vigor das letras, remando contra todos os que as acham inúteis. Ainda os hei de ver, no futuro, muito mais envergonhados do que nós, quando quiserem um professor que ensine as primeiras letras aos filhos e netos e tenham de o pedir emprestado ao estrangeiro, com juros insuportáveis.